Amar a imperfeição, outro texto emocionante por Cris M. Zanferrari
Amar a imperfeição
Cris M. Zanferrari
Gosto das coisas perfeitas. Bem-feitas, bem-acabadas, redondas. Sim, redondas, porque tudo o que é circular encerra em si essa ideia de perfeição, de completude. E quem é que não quer se sentir completo ou perfeito?
Quando nos cercamos de coisas perfeitas, é como se nos aproximássemos, de alguma forma, da própria perfeição. Gosto do alinhamento dos quadros na parede, da minha Le Creuset vermelha sem nenhum arranhão, dos tapetes limpos e imaculados, das roupas bem passadas, dos livros alinhados, da ordem e do progresso (ao menos no que tange à vida pessoal). Gosto quando o bolo assado sai inteirinho da forma, quando o suflê não desanda, quando consigo cumprir todos os prazos. Gosto quando encontro facilmente as coisas porque estão bem organizadas e não é custoso ou perda de tempo apanhá-las. Gosto de pensar que_ às vezes, mas só às vezes_ as coisas estão perfeitas. E que a vida assim não só é melhor como é possível.
Mas as coisas, como as pessoas, sofrem desgastes. Sofrem pelo uso e pela ação do tempo. Desbotam, lascam, se desalinham, se descompõem. As coisas, como as pessoas, são dadas à imperfeição. E o imperfeito não é de todo feio. Nem condenável. A primeira vez que dei por uma pequena lasca em minha Le Creuset vermelha, quis chorar. De pura raiva. Tinham-lhe roubado o aspecto de coisa nova, de coisa perfeita. Não era mais a chaleira mais bonita do mundo. E no entanto, ainda servia para o uso, o que tornaria uma aberração o seu descarte. Não me restou senão aquiescer. Habituei-me a vê-la assim, com um discreto machucado, como uma pessoa se habitua a uma cicatriz.
Sim, é possível habituar-se à imperfeição. Desde que se perceba que as coisas imperfeitas são, na verdade, imperfeitas porque usadas, manuseadas, vividas. Só o que não tem uso ou vida permanece intacto, incólume. E o que é desprovido de uso ou vida é também desprovido de valor.
Leia-me bem: não se trata de deixar a casa cair, de não se fazer reparos ou manutenções. Nem de negligenciar o estado terminal de certos objetos ou relações. Trata-se apenas de uma espécie de aceitação daquilo que não pode ser mudado porque mudado está. Aceitar que as coisas, ou relacionamentos, só têm continuidade e permanência quando_ ao consentir que se encontrem mudados_ mudamos também. Serve pra minha chaleira. Mas pode bem servir pra todo o mais.
Continuo gostando das coisas (aparentemente) perfeitas. Continuo gostando das coisas organizadas e de quando tudo dá certo. Mas estou aprendendo a amar a imperfeição. Não só a das coisas. Também a das pessoas, a dos relacionamentos, a da natureza. Porque no centro de toda imperfeição está a mudança, o movimento, que nos impõem lançar mão de um novo olhar sobre o mundo. Sem esse olhar resvalamos para um perfeccionismo que neurotiza, frustra e decepciona, porque jamais será real. O real é da ordem do imperfeito. E não raras vezes, pode ser belo e bom.
E há, finalmente, aquelas imperfeições que só nós mesmos conhecemos, sejam do corpo, sejam da alma. As mais íntimas, mais resguardadas. Não há que revelá-las. Tampouco esforçar-se para ocultá-las. Há apenas que saber com elas conviver. Só aprendemos a amar a imperfeição quando nela nos reconhecemos.
Gosto, sim, de pensar que as coisas_ às vezes, mas só às vezes_ estão perfeitas. Mas também gosto que estejam_ no mais das vezes_ imperfeitas. Vê-las como são, em sua mais completa imperfeição, me aproxima do que é real. E descubro a cada dia que a vida assim não só é possível como é (bem) melhor.
Maravilhoso! Me emocionou muito… pois tem a ver com o momento que estou passando! Obrigada Cris!! Mexeu com vocês também?
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