SOMOS TODOS PEREGRINOS
publicado em artes e ideias por Suzana Oliveira
A todo o momento estamos lidando com a brevidade da vida. A todo o momento vemos a morte bater a porta de quem menos a esperava, ou mesmo, de quem já aguardava a sua chegada. E independentemente da crença, concluímos: sim, realmente estamos aqui só de passagem.
O que há de tão certo e óbvio como a morte? Mesmo assim, ela sempre consegue nos surpreender, nos ensinando ou apenas nos lembrando de nossa impotência perante ela. É aquela que vence nossa avidez, paralisando-nos na correria.
Em momentos como esse nos deparamos com sentimentos sombrios, como a tristeza e a solidão. Sentimentos estes, expressos com maestria pela alma do artista, destacando aqui, as pinturas do Romantismo do século XIX.
Um século turbulento. Marcado por revoluções sociais e econômicas. Nele, o Romantismo surgiu como uma crítica à confiança do homem em sua capacidade individual e racional de interferir e dominar a natureza.
Um estilo marcado pela irracionalidade, pelos sentimentos individuais, pelo misticismo em detrimento da razão, e pela ligação do homem com o mundo natural.
Centrado no igualitarismo e no individualismo, se expandiu para um ataque aos sistemas de poder vigente, e contribuiu poderosamente para a eclosão de movimentos, como a Revolução Francesa e a luta pelos direitos civis igualitários, que mais tarde, dariam origem à democracia como hoje a conhecemos.
Dentre os autores desta época, temos Caspar David Friedrich, conhecido como um dos melhores paisagistas de todos os tempos e o mais puro representante da pintura romântica alemã.
Suas paisagens primam pelo simbolismo e idealismo que transmitem. Embora fosse um pintor renomado durante sua vida, Friedrich caiu de moda ainda antes de morrer, pois suas pinturas contemplativas não acompanharam o impulso da modernização, sendo consideradas relíquias de uma era finda. Mas será que findou mesmo? Por vezes, a impressão que temos é que as tecnologias avançam, mas as ideologias permanecem no passado.
Em sua mais conhecida obra “O peregrino sobre o mar de névoa”, de 1818, atualmente exposta no Kunsthalle Museum em Hamburgo, na Alemanha, ele consegue retratar, já em sua época, a atual condição do homem, que na prepotência e insistência em afirmar seu domínio sobre a natureza e sobre tudo o que cria, vê-se agora isolado, destituído de qualquer controle, vê-se impedido de enxergar com nitidez aquilo que ele pensava conhecer tão bem. Ele está só e o mundo lhe parece estranho.
Este quadro, além de tantas outras impressões e interpretações possíveis, pode ser lido como uma alegoria da vida humana, principalmente nos tempos trabalhosos em que vivemos.
A imagem embaçada e repleta de mistério nos fala do desconhecido da vida, da imensidão do universo, do isolamento do homem, perplexo diante daquilo que não controla, nem alcança.
Claridade e neblina, cores frias e ácidas se misturam diante de um anônimo, um viajante que observa. Alguém, que pelo anonimato, pode ser cada um de nós. No entanto, não vemos o seu rosto, não sabemos sua expressão, nem pensamentos diante de tudo o que vê. Talvez esteja angustiado, aflito, melancólico. Talvez falte esperança, faltem forças para caminhar.
Num mundo em que estar feliz é uma regra e onde a reflexão antes da fala é escassa, um homem como esse não caberia. Talvez, por isso, ele parece está desprendido, em relevo ao que contempla.
Assim como o anônimo da pintura, ficamos, por vezes, perplexos diante das novas de cada dia, nos sentimos deslocados em meio a tanto sofrimento e desamor.
Cada um de nós tem um peregrino dentro de si, um viajante que sabe que não estará aqui para sempre. E sendo assim, qual deve ser nossa posição diante da vida? Cada um responda para si. Tendo em mente que somos aqueles que fazem o uso responsável de tudo, porque breve partiremos e outros virão após sairmos.
Se somos peregrinos, enquanto aqui estivermos sejamos pacificadores, em meio as guerras travadas diariamente, fazendo conhecidos e dando voz ao anônimo e ao esquecido. Dando voz a outros peregrinos, que tiveram suas vozes abafadas pelos gritos dos poderosos.
Que de vez em quando andemos mais devagar, desacelerando o ritmo, afinal, para onde vamos com tanta pressa? Parece que Caspar nos faz sempre essa pergunta quando olhamos suas obras.
Muitos gostam da frese “não fale o óbvio”. Mas a maneira como temos vivido, a liquidez das relações, a banalização do bem, o não estranhamento diante do perverso, o discurso de ódio, tudo isso tem nos obrigado a dizer o óbvio, ou melhor, a desvelá-lo. Sim, mais do que dizer, temos de explicar o porquê, revelar, tirar o véu, fazer o altruísmo e a sensibilidade renascerem.
E é esse o convite do peregrino: quando viajamos, cada detalhe parece importante e digno de registro fotográfico. Não existe distância grande demais para visitar o lugar tão almejado. O cansaço no final do dia não traz reclamações, somente gratidão pelo vislumbre do novo. Porém, ao voltar para casa, para rotina e correria diária, o viajante, antes tão entusiasmado, é agora um frustrado.
Por fim, não esqueçamos: a vida é breve, é brevíssima, é bonita, merece reflexão e registro. Somos viajantes, precisamos parar um pouco, contemplar, e seguir o caminho, buscando dar sempre os melhores passos. Vivendo a arte e a humanidade que ela nos traz.
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